quarta-feira
1º de abril
1964

 

Folha de S.Paulo
O Estado de S.Paulo
O Globo

João Goulart acordou presidente da República e foi dormir presidente da República no dia 31 de março de 1964. Quando os jornais saíram às ruas no dia seguinte, a queda do presidente ainda era uma mentira de 1º de abril. As manchetes noticiavam uma quartelada, uma sublevação militar iniciada em Minas Gerais, especificamente em Juiz de Fora, onde a 4ª Divisão de Infantaria (DI) era comandada pelo general Olímpio Mourão Filho, antigo militante integralista (fascista) nos anos 30. O militar saiu com tropas e tanques pela rodovia BR-040 em direção ao Rio de Janeiro, chegando à divisa MG-RJ no final da tarde. Por essa hora, a notícia já circulava pelas rádios, e os jornais que fechavam naquela noite já tinham a informação. A dúvida principal era se haveria adesão de outro general, Amaury Kruel, que tinha sido ministro de Jango e àquela altura era comandante do II Exército (atual 2ª Região Militar), o contingente de São Paulo. Os jornais da manhã seguinte fecharam na noite do dia 31. Só na virada de terça para quarta é que Kruel aderiu ao golpe.

Os jornais matutinos que fecharam cedo no dia 31 só tinham notícia da movimentação das tropas de Mourão Filho. Mas vários grandes jornais esperaram receber as informações de São Paulo para fechar suas edições e rodar na gráfica. No jornal mais alinhado ao governo, a Última Hora (que tinha edições em várias cidades do país), a informação sobre a adesão de Kruel ainda não aparecia. A manchete “Sublevação em Minas para depor Jango” encimava uma foto em quatro colunas das tropas legalistas em volta do Palácio Duque de Caxias na Central do Brasil, então sede do “Ministério da Guerra” (antecessor do atual Ministério da Defesa). À esquerda, o jornal reproduzia uma nota oficial do presidente, assegurando “O golpe está condenado”.

Otimismo ainda maior estampava a primeira página de A Noite, do petebista Eurico de Oliveira, que em edição extra trazia a manchete “Povo e governo superam a sublevação”. Citando o então ministro do Exército, o subtítulo cravava: “O movimento subversivo declina, e o general Jair Dantas com mão de ferro vai dominando a situação”. A página era encimada pelo chapéu “A constituição e a lei serão vitoriosas”. O Diário Carioca, de Danton Jobim, acreditou na informação do governo de que conseguiria conter o levante e manchetou: “Guarnições do I Exército marcham para sufocar rebelião em Minas Gerais”.

A grande imprensa brasileira, no entanto, apoiou a derrubada de Goulart. O jornal Correio da Manhã, um dos maiores da época, publicou um editorial no dia 1º/4 intitulado “Fora!” (hoje, se sabe, escrito por Otto Maria Carpeaux e Edmundo Moniz, embora editoriais não sejam assinados), conclamando à retirada do presidente. Na véspera, 31, já tinha soltado outro editorial com o título “Basta!”. A manchete do jornal naquela quarta, 1º/4, era “Dois estados já em rebelião contra JG”, as iniciais do presidente. A “marcha de Kruel” vinha em texto da sucursal de SP, atribuída ao governador paulista. Acima do editorial, um inusitado box fazia alusão ao juramento de posse do presidente e dizia de Jango: “Jurou e não cumpriu. Não é mais o presidente da República”.

Assim, num texto solto, a imprensa brasileira depunha um presidente.

Mourão Filho contava com o apoio do governador mineiro, Magalhães Pinto. Em São Paulo, o governador Ademar de Barros articulava a adesão de Kruel. Os jornais paulistas também manifestaram apoio ao golpe. O Estadão manchetou “São Paulo e Minas levantam-se pela Lei”, enquanto a Folha garantia “II Exército domina Vale do Paraíba”, a região limítrofe entre São Paulo e Rio.

Fora do sudeste, o Diário de Pernambuco afirmava “Forças militares de Minas rebelam-se contra João Goulart e os comunistas”. Preocupava-se com a lealdade do governador pernambucano, o socialista Miguel Arraes, ao presidente. Arraes foi preso no mesmo dia. A Última Hora de Recife também reagia com “Tropas legalistas avançam para Minas”, sob o chapéu “Jair assume comando” – frase que, em 2022, soa até curiosa. Em Fortaleza, O Povo era mais realista: “II e IV Exércitos apoiam movimento mineiro”. E na capital federal, o Correio Braziliense (dos Diários Associados) aterrorizava invertendo os termos: “1º Exército ataca Minas”. Nessa manchete, quem “atacava” eram as tropas do governo, não os golpistas…

Já no dia 1º, policiais e militares à paisana invadiram, depredaram e incendiaram a redação e a oficina da Última Hora no Rio. Mesmo assim, o jornal saiu às ruas. Houve repressão militar também do lado leal a Jango. Um dos poucos comandantes legalistas, o almirante Cândido Aragão, invadiu a sede d’O Globo com fuzileiros navais e impediu a circulação. Por isso, o jornal de Roberto Marinho não saiu no dia 1º de abril. A Tribuna da Imprensa, jornal que tinha sido de Carlos Lacerda e já estava nas mãos de Hélio Fernandes, também não circulou naquele dia.

O apoio da imprensa ao golpe militar refletiu o envolvimento do empresariado e organizações civis de direita, motivo pelo qual, mais recentemente, historiadores têm preferido chamar o assalto ao governo de “golpe cívico-militar”. Quarteladas já tinham acontecido antes, contra Getúlio Vargas (1954), contra Juscelino Kubitschek (1956 e 1959) e o próprio João Goulart (1961, na “resistência” dos ministros militares à sua posse), mas nenhuma chegara a dar um golpe bem-sucedido.

Mourão Filho e Kruel de fato comandaram as tropas que cercaram a cidade do Rio de Janeiro (então um estado em si próprio, com o nome de Guanabara), onde estavam João Goulart e os contingentes militares mais fiéis, como os fuzileiros navais. Mas nenhum dos dois estava à frente do golpe como liderança política: esta coube a generais conspiradores como Golbery do Couto e Silva, Antônio Carlos Muricy, Artur da Costa e Silva e o marechal Humberto Castello Branco, ex-combatente na Segunda Guerra Mundial.

Cercado, Jango saiu do Rio e na manhã do dia 1º de abril foi para Porto Alegre. Continuou em território nacional.

João Goulart só perdeu o cargo de fato na madrugada da quinta-feira, dia 2 de abril, na longa e tumultuada sessão do Congresso em que o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República, mesmo sem base legal para isso, e deu posse ao presidente da Câmara, o também golpista Ranieri Mazzili. Aí, sim, o golpe de estado estava consumado.

Logo depois do golpe, a ditadura fechou diversos jornais – em especial, as edições regionais da Última Hora – e reprimiu jornalistas. Das cinzas da UH gaúcha nasceria a Zero Hora no mesmo ano. Pelo apoio a Jango, o Diário Carioca também foi levado à míngua até fechar, no fim de 1965. Até jornais que apoiaram o golpe, como o Correio da Manhã, foram perseguidos. Quatro anos mais tarde, impôs a censura prévia à imprensa, que durou dez anos. A democracia só voltaria aos poucos, dando um passo de cada vez: em 1979, com a anistia; em 1985, com um governo civil; em 1988, com a nova constituição; e em 1989, com as primeiras eleições diretas.

Créditos:

Texto e edição: Pedro Aguiar

Fontes:

FGV-CPDOC. A imprensa e seu papel na queda de João Goulart (Alzira Alves de Abreu).

FGV-CPDOC. Fatos & Imagens: O golpe de 1964 (Celso Castro).

1 Comentário

  1. Larissa Morais

    Parabéns ao Pedro Aguiar e aos demais professores e aos alunos envolvidos no projeto. O texto e a pesquisa de altíssimo nível serão fonte para a disciplina História da Imprensa, na UFF.

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