Metodologia

O Manchetempo é um projeto de extensão da UFF que utiliza práticas colaborativas e atividades autorais como via para a realização dos trabalhos. Nas etapas de produção, os participantes selecionam fatos históricos, coletam (em fontes disponíveis ao público) reproduções de primeiras páginas relativas às datas em que aconteceram e escrevem análises das escolhas editoriais e visuais que cada jornal fez na ocasião, sempre considerando o contexto da época.

Os momentos de reunião entre os extensionistas servem para discutir e selecionar peças do acervo; debater a abordagem, análise e fundamentação teórica utilizadas; selecionar e apresentar as análises; produzir textos para o site; avaliar o trabalho feito e divulgá-lo nas redes sociais. 

Com periodicidade de publicação de, pelo menos, uma vez por semana, os alunos são divididos em três grupos responsáveis por metas que viabilizem a atualização constante do site. Em 2022, estas metas são: a publicação no site, a divulgação no Instagram e a divulgação no Twitter.

A metodologia do projeto visa garantir a regularidade das publicações no site do projeto, tendo a autonomia e colaboração dos participantes como elemento essencial para concretização deste objetivo.

Justificativa

O projeto parte da oportunidade de compartilhar peças de uma coleção extensa de primeiras páginas de jornais brasileiros e estrangeiros, cobrindo edições do fim do século XIX até a atualidade, de forma não apenas a disponibilizar imagens selecionadas, mas também fazer uma análise de abordagens jornalísticas. Esta iniciativa permitirá que estudantes, professores e pesquisadores tenham acesso digitalmente a artefatos relevantes como registros de acontecimentos no Brasil e no mundo.

Apesar da atual crise do jornalismo impresso, e do jornal diário como um produto informativo em detrimento de formatos digitais, os jornais de referência continuam sendo parâmetros de tratamento dos fatos e fontes de pesquisa para historiadores e outros cientistas sociais. Mesmo se já não exercerem mais o papel de orientadoras do debate público, as coberturas dos jornais ainda são – e provavelmente serão por muito tempo – fonte privilegiada de pesquisa histórica, por abrigarem discursos produzidos sobre acontecimentos relevantes numa sociedade. Entre o século XVII e o final do século XX, o jornal impresso foi o principal meio de comunicação social para o registro, a disseminação e a reflexão sobre os eventos do cotidiano, de forma mais aprofundada que a TV ou o rádio. Mesmo o advento da internet não usurpou de imediato essa posição, já que jornais estenderam sua produção para as plataformas digitais. Portanto, a relevância dos jornais como veículos de comunicação se manteve e vem se adaptando ao novo padrão tecnológico.

Dentro desse formato, a primeira página tem uma função primordial de síntese textual e visual de cada edição. Ao mesclar linguagens verbal e não-verbal, a primeira página apresenta quadros do cotidiano, com um cardápio de fatos que, em datas posteriormente consideradas históricas, permite apreender o contexto de cada acontecimento. Como peças efêmeras, jornais são feitos para terem vida curta e serem rapidamente descartados, sobrevivendo principalmente em acervos e livros especializados. Eles são, no entanto, registros importantes não apenas de eventos, como também do zeitgeist. Primeiras páginas são parte do contexto no qual se inserem, ao mesmo tempo expressando e contribuindo para ele. No aspecto visual, relacionam-se com tendências tecnológicas, artísticas e estéticas da sociedade e da época. Podemos observar, por exemplo, reflexos de vanguardas artísticas em páginas de jornais europeus e latino-americanos do século XX (FERREIRA JUNIOR, 2003). As mutações da primeira página, desde a massa de texto no início do século XX até as “capas” de impacto visual que se assemelham às revistas, refletem as transformações da prática jornalística e da função social dos impressos (BARSOTTI, 2018, p. 62).

Este projeto propõe um trabalho crítico sobre a coleção, não apenas publicando itens, mas também fazendo análises de aspectos verbais e não verbais, de modo a explicitar estratégias comunicacionais. As escolhas de vocabulário e de construção frasal nos títulos serão analisadas discursivamente, tanto quanto as construções visuais. A abordagem visual, tanto na seleção / execução quanto na disposição dos elementos visuais, não é neutra, contribuindo para a comunicação (EMANUEL, 2010; FERREIRA JÚNIOR, 2003). A análise destas estratégias contribui, portanto, para uma educação para as mídias, aspecto importante para a formação atual de cidadãos.

O projeto apresenta-se, assim, como a) um recurso de pesquisa, em áreas como história, história da imprensa, comunicação e comunicação visual; b) espaço de construção de conteúdo relacionada à educação para as mídias, servindo como recurso didático; c) oportunidade de desenvolvimento de habilidades relevantes para a formação dos discentes participantes.

Fundamentação teórica

A primeira página de jornal, na configuração conhecida atualmente, é uma construção histórica da industrialização da imprensa. Ela nasce no final do século XIX nos Estados Unidos e na Europa e vai sendo adotada aos poucos no Brasil nos primeiros anos do século XX (BARSOTTI, 2018, p. 95-133). Antes, o jornal artesanal ou manufaturado era montado de forma linear, de maneira que as notícias se sucediam nas colunas, de alto a baixo e da esquerda para a direita, sem obedecer a uma hierarquia clara. A introdução de tecnologias de composição mecânica, como a linotipo e a monotipo, e de impressão mais precisa, como o offset, abre caminho para experimentações gráficas e para novos arranjos visuais dos jornais.

Como afirma Barsotti (2018, p. 43), relembrando Walter Benjamin, Anthony Giddens e Benedict Anderson, a construção da primeira página de um jornal “se beneficia da separação espaço-temporal e se torna um veículo de aceleração da vida moderna”. A fragmentação da realidade, em simultâneo com a justaposição de assuntos diversos num mesmo diagrama ortogonal, confere à primeira página uma função de registro multifacetado da realidade social. Ela ajuda a construir a percepção coletiva sobre o presente e, por meio dos arquivos de hemerotecas, guarda para a posteridade os discursos contemporâneos aos fatos.

É certo, porém, que nem tudo que ganha importância para o jornal do dia será lido como relevante à luz da História, assim como eventos de inquestionável impacto histórico podem ser negligenciados ou até passar despercebidos pela imprensa. Como nota Sevcenko (1985), observando como historiador, “é desconcertante” confrontar-se “com uma única folha de papel” que encaixa “lado a lado a irrupção de uma guerra sangrenta que põe em risco a própria sobrevivência da humanidade, casamento de uma atriz de TV nacionalmente conhecida, um gol anulado numa disputa entre times locais e um chimpanzé que fugiu do circo e subiu num poste de iluminação”. A aparente arbitrariedade dessas seleções e recortes, se examinada com distanciamento histórico, na verdade responde a critérios editoriais, constrangimentos organizacionais, culturas profissionais, ideologias de classe e fatores de produção que têm seus pesos e influências em cada decisão de incluir ou excluir uma chamada, uma foto ou uma manchete.

Nas palavras de Pereira Junior (2006, p. 100), as “primeiras páginas são o território mais gritante da enunciação jornalística”, cumprindo “o papel de cardápio das diferentes notícias contidas na edição”. Não por acaso, o grito era a principal maneira de chamar a atenção para as manchetes dos jornais, como lembra Barsotti (2018, p. 113), pela voz dos jornaleiros (muitas vezes, crianças) que os vendiam pelas ruas dos centros das cidades até a segunda metade do século XX.

Para Ferreira Junior (2003, p. 79), a primeira página traça uma “hipérbole visual” que o autor subdivide em duas categorias: “uma mais ordenada, com uma distribuição equilibrada do texto verbal e dos recursos visuais”, que seria a primeira página propriamente dita, enquanto a outra é “mais orgânica, na qual, às vezes, somente um (ou pouco mais de um) elemento gráfico toma conta da página, assemelhando-se aos cartazes”, melhor descritas como capas ou “páginas-pôsteres”. Nos últimos anos, diversos jornais brasileiros (como o Correio, de Salvador; o Diário do Nordeste, de Fortaleza; e o gratuito Metro, de São Paulo) adotaram este segundo modelo como estratégia gráfico-editorial para suas primeiras páginas, aproximando-se de revistas.

É por esses referenciais que o projeto Manchetempo se guia para selecionar, organizar, apresentar e analisar reproduções digitais de primeiras páginas de jornais em datas em que noticiaram acontecimentos de repercussão histórica ou coberturas marcantes para o jornalismo (nos jornais vespertinos, nas mesmas datas dos fatos; e, no caso dos matutinos, nos dias seguintes). As análises envolvem não apenas conteúdo textual das primeiras páginas, mas também imagens e diagramação, considerando que a combinação de linguagens verbal e não verbal constitui um só discurso, diferente dos discursos produzidos em separado (MORAES, 2015). A despeito de sua base textual, assumimos aqui a perspectiva que compreende a leitura visual das primeiras páginas em seus conjuntos verbais-visuais, como imagem (BARSOTTI, 2018, p. 295). No âmbito da análise visual, o projeto apóia-se nos seguintes temas:

– retórica visual, especialmente em Emanuel (2010) e Barthes (1970, 1977 [1961], 1977 [1964]), além de apelos retóricos aristotélicos.
– princípios de composição e de Gestalt, com apoio de autores como Dondis (1997), Lupton e Phillips (2012)
– questões de projeto gráfico, como grid (MULLER- BROCKMANN, 1996; SAMARA, 2011) e tipografia (BRINGHURST, 2005; LUPTON, 2006)
– história do design, especialmente da comunicação visual (MEGGS, 2009; MELO & RAMOS, 2012)

Referências bibliográficas

BARSOTTI, Adriana. Uma História da Primeira Página: do grito ao silêncio no jornalismo em rede. Florianópolis: Insular, 2018.

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BARTHES, Roland. The Photographic Message. In: ______. Image Music Text. Londres: Fontana Press, 1977 [1961]. p. 15–31.

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